BARCO E O MITO
Barco de madeira construído no ar para a viagem do mito
Nau feita de vento
e força de um pensar antigo
Tua quilha tem o sabor do sal das águas fundas
e de um peixe que atravessou a garganta de um morto
Na tua vela tracei o emblema da rota
que um dia imaginei olhando a Grande Ursa
nos caminhos da noite
Nau sem porto
as águas te seduzem e contigo me arrastam
Barco feito de mito
construído no espaço
com a matéria das nuvens
Nau feita com o bico de uma ave
e um desejo de fuga
Nau que a ti mesma te armaste
do nada que podemos
Nave do nada feita e quase ave
desfeita em voo puro e quase mito
ODE NA PRAIA DO LEME
A noite é tua prostituta do Leme
E com ele dissolves a pobreza dos homens
no mito de tua carne
O vento vem do mar e dos navios que passam
carregados de vento e sal para as Antilhas
A morte vem das ilhas
trazida pelo vento desta noite
nesta praia deserta
A noite é tua, nela está o emblema
da tua posse esquiva, e os seres se incorporam
ao casco dos navios
e sem partirem vão‐se para sempre
O POLICHINELO
O seu segredo era como o dos outros.
Seus olhos eram de vidro azul
e na boca vermelha
o riso da ironia.
O humor profundo, amargo e doloroso
vinha de sua boca;
o riso da sabedoria
e do desespero
gritava da sua boca aberta em sangue.
O riso do polichinelo
vinha do coração ausente, era uma advertência.
Era apenas o riso
e falava de um mundo
maior que sua alma.
O COMEDOR DE FOGO
Veio do comedor de fogo e de seus milagres a esperança impossível.
Do comedor de fogo e de seus milagres à porta de sua tenda
Onde dormiam os cães numa nuvem de moscas
Veio do comedor de fogo a esperança dos mundos impossíveis
Veio dessa lembrança hoje apagada pelo tempo o sombrio desejo de evasão
Veio do comedor de fogo a visão da vida aberta como um grande circo
E o convite irreal para a distância onde se esconde a morte
Até o amor se perdeu nessa lembrança de um estranho comedor de fogo
E toda a infância confundiu-se com os milagres desse saltimbanco
E de seus cães doentes à porta de sua tenda.
VIAGEM AO SOBRENATURAL
Mundo pressentido e oculto
na palavra anjo à porta de Tobias
na viagem não realizada mas da qual se trouxe
um pássaro que não pertence a nenhuma fauna
e um peixe de fogo
na palavra mãe onde há o mistério
do cotidiano incompreendido
na palavra mosca onde se faz presente
o desespero da escolha entre o mal e o deserto
na palavra rosa
corpo e essência do efêmero
Na imagem vista no espelho
a boca e os olhos na voragem do tempo
oferecem o amor, puro e inacessível
A voz presa no disco da vitrola
é apenas o outro lado eterno.
A ESTRANHA MENSAGEM
Ele veio nas trevas quando havia silêncio
e de novo trouxe a ternura dos galhos tombando para a madrugada
Eu subi do fundo do mar como um líquen liberto
para ouvir a sua voz que era imensa
e trazia a ansiedade das flores explodindo
mas só vi o silêncio enorme como a noite
E ela chorou dentro de minha tristeza
porque era como a revelação do que eu havia perdido
Ainda trazia nas mãos o frio dos troncos úmidos da noite
e nos olhos a humildade da terra encharcada de chuva.
Um dia eu descerei verticalmente e para sempre
ao fundo deste mar onde ela mora
como um barco de pescadores desaparecidos.
ORFEU
Com palavras que hoje restam da infância
edificarei meu reino
e nele estrelas cairão de noite puras.
De corações mais puros
tombarão as águas em que os animais
virão matar a sede
e onde dois olhos, símbolos do amor,
o caminho indiquem para a salvação.
Com palavras inúteis e canções apenas
refaremos o mundo
o mundo sobre o qual
eterna como a rosa morta pela chuva
a poesia reine
e viva sobre a terra
A AVENTURA
Eu te encontrei
como quem atravessa um corredor longo e janelas fechadas
como quem vem para a manhã trazendo o sono enfermo das madrugadas
Eu te encontrei
como quem saiu da noite e foi descalço até o mar para brincar nas pedras
Como quem sob a chuva saiu para apanhar as açucenas
e dormiu nas grandes folhas úmidas das árvores
ou como quem, perdido nos caminhos, de súbito encontrou o mar